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O Nascedouro

Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la. (Clarice Lispector – Perto do Coração Selvagem, 1943)

Minhas primeiras inserções na Arte se deram através do desenho, que desde a tenra infância fez parte de meus registros pessoais. Na ausência de um orientador mais próximo, ou de um familiar que tivesse intimidade com as artes, eu procurava desenhar figuras que via em livros, quadriculava as imagens e as reproduzia de forma quase perfeita.

Nasci em Paracatu, no interior do estado de Minas Gerais, onde vivi uma infância impregnada de sentidos do belo e do natural, num tempo em que se pensava a natureza de forma inesgotável e plena. O contato com a natureza era algo corriqueiro e permanente, visto que nossa vida se dividia entre a pequena cidade e a fazenda de meus pais, um lugar longínquo e de difícil acesso, que me deixou fortes lembranças. Lá, costumávamos passar os períodos de férias escolares, quase como uma obrigação, o que roubava em muito o que poderia ser poesia. Mas foi um tempo feliz, de paz e de liberdade.

Não havia museus nem eventos culturais na cidade, e como não costumávamos viajar para outros lugares, as perspectivas de crescimento artístico e cultural para uma garota rebelde e cheia de sonhos como eu eram limitadas. Mergulhava em livros, gostava dos poemas de Fernando Pessoa, Clarice Lispector e admirava as obras dos artistas da MPB da época – Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Betânia e outros. Era das mais estudiosas de uma turma meio perdida e num tempo de “quase silêncio” em relação a tudo o que acontecia ao nosso redor, como resultado de um governo militar e ditatorial.

Sempre me encantei com as ciências exatas, herança de minha mãe, que era professora de Matemática, e de meu pai, que se lamentava por um curso de Engenharia incompleto. Daí, talvez, minha opção pela Engenharia como primeira profissão, embora dividida entre esta e o sonho das Artes Plásticas. Mais tarde, a Matemática me ajudou nos desenhos de figuras humanas e naqueles que demandavam conhecimento sobre perspectiva e outros recursos importantes nas artes visuais.

Atuei como Engenheira Civil por muitos anos em Belo Horizonte, numa empresa estatal, onde tive a oportunidade de acompanhar, em grande escala, a formação das áreas de aglomerados humanos que se formavam numa cidade em crescimento vertiginoso, o que me aproximou da Engenharia Ambiental, na qual me especializei.

Em 1995, matriculei-me no curso de graduação em Artes Plásticas pela Escola Guignard-UEMG, mas não o completei. A profissão de Engenheira e as obrigações pessoais e familiares falaram mais alto naquela época e, somente depois, em 2011, quando me aposentei, consegui me dedicar inteiramente às artes.

A temática ambiental e urbana dominou a maior parte do meu trabalho artístico, claramente influenciado pela experiência na Engenharia e por lembranças de uma infância vivida num quase oásis ambiental, além de outras digressões, próprias de uma mulher sensível e atenta às enormes desigualdades existentes em seu país.

Minha manifestação nas artes se deu de forma questionadora. Muitas das minhas criações passam por reflexões sobre o nosso tempo, seja quanto às questões ambientais e urbanas, seja às relativas ao ‘feminino’, numa época de grandes transformações e conquistas, mas ainda de muito atraso, em se tratando de questões de ‘gênero’. Algumas séries dessa temática ambiental foram acontecendo ao longo de minha trajetória, como as que intitulei “Reflexões Ambientais” (Fig. 1 e 2), “Ninho Ameaçado” (Fig. 3 e 4) e “Paisagens” (Fig. 5 e 6).

Fig. 1 – Diversidade – 100 x 100 – AST – Série: Reflexões Ambientais
Fig. 2 – Menina no Lixão – 100 x 100 cm. – AST – série: Reflexões Ambientais
Fig. 3 – Caos Urbano – 80 x 80 – AST – Série Ninho Ameaçado
Fig. 4 – Estamos em Extinção? – Técnica mista – 50 x 100 cm. – Série Ninho Ameaçado
Fig. 5 – Arvores do Cerrado – 80 x 100 cm. – AST – Série: Paisagens
Fig. 6 – Curvas de Minas – AST – 60 x 80 cm. – Série: Paisagens

Quanto às migrações especificamente, foi por admirar tanto as borboletas e suas metamorfoses que me deparei com a rica e curiosa história migratória das espécies “Monarca”. A história desse inseto é cheia de desafios: a partir de um lagarto ele se torna um ser maravilhoso e frágil, com uma vida breve e intensa. Penso que o amadurecimento do ser humano se aproxima em muito disto: sair do casulo, abrir-se para o mundo e estar disposto a viver por uma causa.

Depois das borboletas, interessei-me por movimentos similares que ocorrem com outros animais mundo afora, de forma igualmente curiosa e mesmo espetacular, surgindo daí a série “Migrações de Animais” (Fig. 7, 8 e 9), à qual estou-me dedicando há três anos.

Fig. 7 –  Migrações de Borboletas Monarca – Óleo Sobre Tela –
40 x 50 cm. – Série: Seres que Migram
Fig. 8 –   Felinos – Óleo sobre Tela – 60 x 100 cm. – Série: Seres que Migram
Fig. 9 – Migração de  Peixes – AST – 60 x 100 m. – Série: Seres que Migram

As migrações fazem parte do ciclo de vida dessas espécies. Elas acontecem em determinadas épocas do ano e por várias razões. Minha pesquisa busca observar tais movimentos e traduzi-los pictoriamente: mostrar como se organizam, suas motivações, as lições aprendidas e principalmente a beleza plástica.

Meu objetivo central não é desenvolver uma tese sobre questões de preservação ambiental, já tão ricas de estudos acadêmicos, mas situa-se na representação desses agrupamentos, nas nuvens cromáticas produzidas por suas movimentações, no impacto visual que causam na natureza, alcançando as questões geopolíticas, que são interessantes e me levam a pensar sobre as migrações de humanos e suas semelhanças com as dos animais ditos irracionais.

Nesse passo, encontro a mim mesma, uma migrante vinda de Paracatu para Belo Horizonte com 15 (quinze) anos de idade, trazendo na bagagem as lembranças do interior e vivendo as dificuldades de uma cidade grande, numa região cada vez mais sofrida pela degradação ambiental, em especial pela mineração, cuja exploração tem sido feita de forma predatória e cruel.

Morando em Belo Horizonte, deparei-me com muitos outros migrantes. Era difícil encontrar uma pessoa nascida e crescida na Cidade; a maioria vinha do interior, de várias partes das Minas Gerais. Dessa forma, convivi com as questões migratórias desde muito cedo: dificuldades de adaptação, de deixar entes queridos para trás, de sempre voltar à terra natal para rever amigos e reviver lembranças, de preconceitos havidos e de não se sentir pertencente ao lugar. Hoje, depois de tantos anos, Belo Horizonte já faz parte da minha história, já carrego amor por suas paisagens belas, mas, infelizmente, em franca degradação ambiental.